"Boneca de pano" texto da autoria da Laura (9º ano) - texto vencedor do 3.º escalão
Concurso Uma imagem, Uma História - mês de fevereiro
Boneca de pano
As roupas rasgadas caíam-lhe na pele áspera, maltratada pelas realidades do mundo que a rodeava. Enquanto muitos trocavam de casa, ela limitava-se a trocar de rua. O sucesso na escolaridade já não era um assunto discutível, com idade tão tenra e condições lamentáveis, já presumia que o triunfo não estaria ao seu alcance.
Testemunhava cores magníficas e odores desejáveis a cada minuto, as roupas, os perfumes, os sapatos...cada pessoa que passava a seus pés era apenas mais uma que baixava a cabeça, desdenhando e censurando interiormente uma mera condição social. Incrível como em poucos segundos a dignidade e os valores morais de um ser humano podem ser postos em causa. Sentada no chão com o cabelo estendido pelas costas, tentava encarar os olhares de quem os desviava com pena e culpa.
Todos os domingos, um pomposo vestido obrigava os seus olhos a estudar a figura de uma rapariga, ela de cabelos muito loiros como fios de ouro que brilhavam ao sol. A postura era admirável, constantemente com ombros direitos e cabeça erguida, sem dúvida que nesse caso a indiferença era inegável. Sempre acompanhada pela mãe: uma mulher reputada e temida pela cidade cuja imagem era extremamente cuidada. As duas passavam ao lado para sentido norte, em direção ao mercado. O mercado…como era invejado o mercado por quem nunca tinha pisado o chão de azulejo! Saíam assim, naquele dia de descanso, às dez da manhã das portadas castanhas, com um saco de napa cheio de fruta.
Quem as olhava era Elisa, a jovem negligenciada pela sociedade. Vivia em plena miséria com os seus três irmãos mais novos e o pai, um homem de família, que fazia os possíveis para manter os filhos vivos. Durante o dia procurava oportunidades. À noite voltava para o beco onde se acomodavam e se preparavam, após umas horas, para mais um nascer do sol. Uma história triste como qualquer outra, a mãe falecida já há alguns anos, vítima de uma condição terminal. Os ordenados, subsídios e investimentos nas contas do hospital, tinham levado mais uma família à falência. Meses após o funeral, o inevitável aconteceu, as poupanças começaram a faltar. Então, a luz começou a ser cortada tal como a água e um frigorífico cheio.
Da calçada fria onde se sentava todos os dias de mão estendida ao público, na esperança de uma alma bondosa, continuava a sonhar acordada com as paredes do seu quarto. Estavam revestidas de papel de parede branco-pérola e a prateleira sobre a cama ocupada com bonecas de pano, ainda guardava uma, a sua preferida. Acordava submissa à realidade e colocava os olhos na mãe e na filha... ainda conseguia observá-las.
Uma figura maternal é sempre invejada por quem não tem oportunidade de a ter a seu lado. Com todos os motivos que Elisa poderia cobiçar, todos os vestidos, toda a comida no saco, a provável casa grande com um jardim enorme, apenas lhe fazia falta a mãe.
Desta vez, a rapariga de vestido que frequentava o mercado, desviou-se do passeio e aproximou-se da mão fria estendida. Elisa ainda sentada olhou-lhe os sapatos e levantou a cabeça para admirar os cabelos brilhantes. Nas mãos finas e pálidas da personagem estava uma nota, não era muito, só mesmo o troco das mercearias. Para retribuir pelo gesto gentil, não tinha muita escolha, sorriu-lhe e inocentemente entregou-lhe a única boneca que restava do seu lar.
“- Chamo-me Elisa, e tu?”
O mundo aos olhos de duas crianças é genuíno, pacífico, olham-se e olhar-se-ão sempre como duas vidas semelhantes, deixando de parte o dinamismo da sociedade.